Bem lá em cima, no alto do morro, passava a cerca que dividia o sítio, que não era muito grande. Uma boa parte da baixada por onde corria o riacho, mais ou menos um terço da propriedade, era ocupado pelo pasto verde, bem cuidado, em que pastam tranquilos três belos cavalos. A parte restante, era plantada com árvores frutíferas. Bananeiras , laranjeiras, canas caianas, e o alto pé de cambucá. Havia ainda bastante aipim, e milho era plantado para servir de ração para os animais. Aquele topo do monte era um ponto estratégico. Ali se sentava, quase todos os dias, a moreninha do sítio. Era pequena , do tipo mignon, não crescera muito, já tinha 12 anos, já era uma mocinha.
Muito solitária, não tendo com quem brincar, subia o monte e lá se sentia livre, para jogar com os sonhos e as fantasias que construía Levava os livros pois ali era o lugar ideal para decorar verbos, estudando-os em todos os tempos, modos e pessoas. Bem alto , recitava as capitais dos estados brasileiros, desde o Amapá ao Chui. E o vento que levava suas palavras, era responsável pela fixação que era realizada através do eco, que repetia suas palavras. Era um processo natural, interessante e agradável. De lá de cima, ela conseguia ver trechos da estrada que limitava o sítio de um e de outro lado. Essas estradas encontravam-se adiante, no final da baixada e eram cercadas de bambu gigante, o que dava um aspecto sombrio à entrada do sítio.
Como nascera ali, ela conhecia quase todas as pessoas que passavam nas estradas, mesmo à distância. Os rapazinhos passavam de bicicleta ou a cavalo. Cada bicicleta era caracterizada pelo ruído de sua campainha e os cavaleiros pelo trotar de seus cavalos ou pela canção que assobiavam pelo caminho.
Aquele era o seu ateliê de sonhos- alegres, coloridos, felizes ou cheios de esperança ou de dúvidas e incertezas. Espinhos pontiagudos , tirados com muito cuidado , eram usados como lápis para escrever ou gravar, nas folhas verdes e espessas de uma planta comum, comestível, a mesma de onde tirava os espinhos,chamada de "Orai pro nobis", cujas folhas são tenras, gelatinosas, sem nervuras, parecendo próprias para gravar o nome do príncipe sonhado...
Sempre, lá estava ela, á sombra de uma grande carrapeteira, que a protegia dos raios fortes do sol. Sob um chapéu cor dr palha, seus cabelos, escuros e levemente cacheados, deixavam à mostra seu rostinho mais europeu do que mestiço. Seus olhos, quase negros, estavam sempre atentos aos visitantes constantes: passarinhos que pousavam bem pertinho, e pareciam entender seus pensamentos. As borboletas coloridas, grandes e pequenas, chegavam a assustá-la, pousando no seu chapéu .. Lagartixas que passavam correndo, espantavam a "fadinha do monte". Quando ouvia a campainha da bicicleta que seu coração já identificava, colocava-se de pé, jogava as cartinhas de folhas verdes, atirava beijos que jamais alcançaram o pretendente. Ele nuca soube que ela estava ali....
Tão tímida, tão pequena, seu amor morava no monte e, só ali ele se revelava como se o bem-te-vi que a ouvia, pudesse levar recados, e o beija-flor, quando pairava no ar, tão perto dela, quisesse lhe entregar uma mensagem envolta em poesia, embalada na paina que voava no ar, tão leve e macia...
Quando a tarde chegava, passavam voando, aves que pareciam patos selvagens. Ela percebia que era hora de voltar para casa. O sol já começava a descambar no horizonte e a brisa começava a refrescar...
Ela se levantava, sacudia o vestido rodado, ajeitava o chapéu e pegava os pertences para o retorno. Por ali ficavam inúmeros bilhetes, cartinhas e mensagens que não foram enviados, a não ser pelo pensamento. Lindos recadinhos de amor, carinhos tecidos em sonho, como se fosse um grande tapete, com cores de esperança e de alegria. Seus sonhos ficavam ali. Era sua oficina, na qual tecia, a cada dia novas ilusões.
Voltava para casa para dormir e sonhar. Sonhava com formigas que passavam em correição, carregando a carruagem que trazia o seu príncipe encantado! Era tão pequenino. Era mesmo um sonho. Sonho de menina.
No dia seguinte, quando voltava da escola, depois de almoçar e fazer os deveres, lá ia ela, em busca do seu camarim, em que todos os personagens de suas histórias, todos, passavam pelos caminhos coloridos da imaginação. A menina já teria escrito um livro, se aquelas folhas fossem contadas e registradas. No entanto, no dia seguinte, estavam todas murchas, quase secas, o que despertava em seu coração novas idéias, novas imagens para outras declarações, cada vez mais lindas.
Então, cuidadosamente, para não se ferir nos espinhos, retirava algumas lindas flores do "Orai pro nobis", que eram doces como verdadeiras rosas, e com elas enfeitava seu chapéu, como se se preparasse para o encontro imaginário do entardecer, quando as formiguinhas e os colibris ajudariam a segurar o longo véu que a enfeitaria para ir ao encontro de seus pensamentos. Estava tão envolvida em seus devaneios, entre fadas e madrinhas, que não percebeu a aproximação de seu pai que, ocasionalmente , passara por ali, reparando as cercas.
Ah! Que susto! Toda sua corte se desfez como uma bolha de sabão e se viu acordar do encantamento a moreninha do sítio que, meio sem graça, aproveitou a companhia para o retorno, ansiosa que chegasse o dia seguinte para continuar a tecer seu tapete colorido...